Wednesday 2 April 2008

O Paciente Inglês


Esta foi uma das minhas primeiras crónicas publicadas pela revista Topos&clássicos, em Maio de 2006.

Texto e fotos : Mike Silva ( C) 2006 Sala das Máquinas


Embora pareça ter saído de um dos episódios de Mr.Bean, o Reliant Robin foi uma tentativa honesta de proporcionar mobilidade nos tempos difíceis do pós -guerra.
Amado por uns , gozado por outros, este simpático e vagaroso automovel não deixa contudo ninguém indiferente à sua passagem.

O som que se aproximava , ecoando por entre as típicas casas britânicas de tijolo ainda sujo de fuligem da era da revolução industrial,quase que me enganava; Ia jurar que o veículo que se aproximava era apenas mais uma das minimalistas criações de Alex Issigonis. Mas a reacção das crianças na esquina, a apontarem frenéticamente na sua direcção, fizeram-me saber que o desajeitado Reliant tinha chegado. O rosnar nervoso do motor Reliant de 850 cc, e o aspecto de Fiat 127 com apenas uma roda a frente, drogaram-me de imediato.

Construido em Tamworth, Staffordshire, região marcadamente industrial e mineira, este veículo pretendia explorar um nicho de mercado onde aqueles que não podiam aceder financeiramente a um automóvel, o podiam fazer com o Reliant, onde bastava a carta de motociclo. Estando o motociclo largamente difundido no pós-guerra, até mesmo como meio de transporte familiar, ( à semelhança de Portugal, nas décadas de 50 e 60 com as Sachs, Casal e companhia) não foram poucos os que ,estando habilitados apenas para a condução de motociclos, ficaram radiantes com este novo modelo. Como extras, podia-se optar por um "conjunto" de jantes especiais, formado por apenas duas jantes, para as rodas traseiras, e uma grade para o tejadilho.

Vendido a um preço muito inferior ao de um Morris Minor, o Reliant reinou até ao aparecimento do Mini, onde veio a perder interesse e clientela ate ao fecho da fábrica em 1998. Nao foram alheios os problemas dinâmicos e de imagem durante os anos de fabrico. Acusações de insegurança devido ao formato de triciclo, permanentes enxovalhos na via pública,onde os peões se riam e troçavam em surdina, participações em séries cómicas, denegriram e desmoralizaram progressivamente a carreira do pequeno Robin. Como cá se fazem, cá se pagam, existe hoje uma enorme procura por este carro, estando por isso bastante inflaccionado, e os peões que outrora gozavam, hoje empunham telefones e disparam por onde quer que ele passe.
Mr. Brian, o reformado da cerâmica feliz proprietário deste Rialto, facelift de início dos anos oitenta do Robin, não percebe o meu olhar de admiração, e insiste em dizer que o carro é uma porcaria.

Quando pergunto se o quer vender, ajeita a bóina e dispara em dialecto Potteries, que já está velho para mudanças, e que agora ele ( O Reliant), vai ter de o carregar até cair de podre. Com efeito, construído em simples varão de ferro quadrado e soldado, muitos foram os Reliant que pereceram rapidamente. Jessie, o Reliant de Mr .Brian, teve a sorte de ser tombado em cima duns pneus e levar umas grotescas demãos de tinta marítima utilizada para revestir o fundo das barcaças dos canais. A carroçaria de fibra de vidro destes automóveis, apesar de não apodrecer, não raras vezes era atamancada por sapateiros de cada vez que se despistava ou embatia nalgum valado.

Quando expliquei a Mr .Brian porque é que queria dar uma volta no carro dele,expliquei que era para tirar umas impressões para mostrar lá em Portugal, e ele olhou-me desconfiado julgando que eu queria levar-lhe a Jessie. Sempre quis escrever sobre o Reliant desde o primeiro momento que vi um, e tinha pensado em contactar o Reliant Owners Club, mas entretanto o rosnar empertigado da Jessie a passar debaixo da minha janela às seis da manhã de todos os Domingos, sempre que o velho Brian vai tentar vender os seus cacarecos na habitual Car Boot Sale, levou-me a interessar por este particular carro ainda na luta diária, em vez de um restauradinho e guardado na garagem.

Após algumas voltas a pendura, circulando pelas ruas cravadas de lojas "fish & chips" e olhado de soslaio de cada vez que Mr. Brian observa o retrovisor, começo a ganhar o feeling de circular em tal engenho. Num barato tablier de plástico , que incorpora uma consola, são visíveis alguns items emprestados da extinta Austin-Rover. Indicadores, manetes, puxadores, não conseguem esconder a sua origem British Leyland. O motor ecoa pelo habitáculo, ameaçador, como se a qualquer momento fosse rebentar com o tablier. Este, por sua vez não deixa muito espaço vago onde eu possa meter as pernas. Os Staffordshire Terriers tentam competir com o barulho do motor, ladrando incessantemente, enquanto Mr. Brian vocifera impropérios tentando acalmar os cães.
Após alguns minutos, ganho coragem, e peço a Mr.Brian para me deixar pilotar. O silêncio, seguido dum abrir de porta, mostrou-me que tive sucesso.
O arranque , é repentino, por mais que se doseie a embraiagem. De cada vez que curvo, tenho de passar um pouco para a outra faixa, tipo camião, devido à pouca brecagem. Aquela sensação de prestes a capotar, o que me obriga a seguir devagarinho. Este é sem dúvida um carro para quem quer ser notado. Por onde quer que passe, os olhares convergem na minha direcção, enquanto tento fazer um ar o mais inglês possivel. Olho para uma vitrine e vejo-me a pilotar um "Cessna", embora sem asas. O acelerador , bastante vivo, transmite alguma adrenalina às rodas de dez polegadas vindas sabemos muito bem de que modelo, mas o ponteiro da velocidade move-se com dificuldade até estagnar proximo das 50 milhas por hora, cerca de 80 Km/h. A alavanca de velocidades move-se livremente na lateral, exigindo algum " adivinhar" sempre que pretendo engrenar uma mudança,originando por vezes um forte arranhar que se estende por todo o meu braço.
A travagem ,claro está, não podia ser nada de especial; Convém ter a roda da frente a direito, senão ela será "empurrada" conforme estiver, travando como um sabão dentro de uma banheira. O peso do motor e da caixa,situados convencionalmente a frente e longitudinalmente, contribuem para uma direcção pesada. A caixa de direcção ,de sector dentado, também foi emprestada da BL, com a diferenca de que apenas movimenta um braço ligado ao garfo da roda da frente.


Apesar de poder circular nas auto-estradas, não me atrevi sequer a entrar numa, porque seria suicídio. Conduzi de volta o pequeno Reliant, sob o olhar aliviado de Mr. Brian, e dos seus cães que vomitavam os pulmões de tanto ladrarem.
Quantas histórias terá a Jessie para contar ? Deixo Mr. Brian e a Jessie, com a sensação de estar a deixar os protagonistas de uma qualquer série inglesa, na esperança de que , talvez um dia ele me bata a porta numa manhâ de Domingo a convidar para ir a cidade vender uns cacarecos na car boot sale...






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