Nos tempos conturbados que vivemos, em que o preço do barril de petróleo atinge níveis record, existe ainda alguém que se pode dar ao luxo de dizer que possui um veículo que jamais entrou numa bomba de combustível...
Texto e Fotos : Mike Silva
Não podia ser! A linha do comboio estava a mais de três quilómetros. Mas os apitos e o "respirar" característico de um comboio a vapor, por si só já suficientes para fazer subir a pulsação, soavam cada vez mais perto. Eis que dobrando a esquina, junto ao pub local surge o monstro verde.Desconfiamos que alguma coisa está errada, pois o tejadilho deita fumo que se farta. E mais uma vez, o apito estridente que desta vez se assemelhou a um apito da sáida da fábrica. Os ingleses locais, já habituados a ver este camião nas redondezas, prosseguem como se nada fosse. Eu escorro suores frios, e não consigo fechar a boca.
Fabricado em Shrewsbury, no ano de 1924, este camião esteve inicialmente ao serviço de uma fábrica de lanifícios de Liverpool, sendo posteriormente vendido a um operador de transporters rodoviários de Merseyside, que o utilizou até 1940. Durante os anos da guerra, rebocou peças de artilharia e atrelados que serviram para os mais diversos fins, sempre nos arredores de Liverpool. Nos anos do pós-guerra, e precisando de uma caldeira nova, foi encostado num barracão até aos anos oitenta, onde as instalações iriam ser demolidas para dar lugar a uma urbanização. Geoff Clarke, pai do actual proprietário, como possuia um atrelado de máquinas industriais, ficou com o camião de graça, fazendo o "favor" de o remover dali.O atrelado de um eixo, bastante apodrecido, pereceu nas mãos dos sucateiros locais.
Ainda assim,este camião permaneceu uns tempos sem ser recuperado, mas finalmente em 1992 deu-se início ao restauro, com a ajuda de ( claro) especialístas de restauro de comboios a vapor.A família Clarke, resolveu pintar na carroçaria o nome da empresa original, Edward Billing &son, graças a velhas fotografias onde figuravam camiões semelhantes.
Deixa cá andar nisto...
Não escondo o meu fraco por comerciais pesados. Há algo de "mal amados" neles, e depois o tipo de conhecimentos necessários para manter e recuperar este tipo de veículos,não está ao alcance de um simples entusiasta. Também não dá jeito nenhum guardar na marquise três caixotes de cem quilos cada um, com chaves de luneta a partir do número 40...O que interessava agora era poder averbar no meu livro de experiências , a sensação de circular em tal engenho.
O que nos salta logo à vista, é a sua tracção por corrente às rodas traseiras, como uma moto. A orquestra de assobios e esguichos de vapor, irrompem por debaixo da carroçaria como várias panelas de pressão.
Para sair de manhã com este veículo,há que acordar uma hora mais cedo para aquecer a fornalha. Imponente, à frente, a caldeira vertical e respectivo tanque de água ocupam toda a parte da frente, fazendo um "favor " de deixar uma mera janelinha para o "maquinista" poder ver o caminho. Faço ideia de quantas motas isto já deitou ao chão.
Subindo para a posição de condução, na cabine de madeira, eis que como "pendura"tenho um caixote embutido carregado de carvão. Á frente, apenas o volante, e um ambiente tão espartano, que faz o tablier do Carocha parecer o Cockpit do Space Shuttle.
Apesar do formigueiro nas mãos, e dos meus neurónios me incendiarem a carne a ordenar que deite as mãos ao volante e "chegue fogo à peça",a colecção de manetes e puxadores peganhentos cheios de massa ,avisam-me que será talvez sábio deixar a malta que percebe do assunto tomar conta daquilo. É com muita pena que decido , embora coberto de ignomínia, deixar Tom me mostrar como se guia.Nunca pensei olhar para um veículo e sentir-me como se estivesse a ver hieroglífos numa parede dum templo inca.
Subindo para a posição de condução, na cabine de madeira, eis que como "pendura"tenho um caixote embutido carregado de carvão. Á frente, apenas o volante, e um ambiente tão espartano, que faz o tablier do Carocha parecer o Cockpit do Space Shuttle.
Apesar do formigueiro nas mãos, e dos meus neurónios me incendiarem a carne a ordenar que deite as mãos ao volante e "chegue fogo à peça",a colecção de manetes e puxadores peganhentos cheios de massa ,avisam-me que será talvez sábio deixar a malta que percebe do assunto tomar conta daquilo. É com muita pena que decido , embora coberto de ignomínia, deixar Tom me mostrar como se guia.Nunca pensei olhar para um veículo e sentir-me como se estivesse a ver hieroglífos numa parede dum templo inca.
Tom diz-me, que se eu quiser, posso deitar umas pedras de carvão mineral para a fornalha. Um prémio de consolação. Como se fosse um carro destravado, sem qualquer esforço ou barulho de qualquer espécie, pomo-nos em movimento. E o que é feito do "chug,chug ? Como que lendo o pensamento, Tom abre uma válvula rodando um manípulo, e eis que aumentamos a velocidade. O andamento é suave, parecendo, pela ausência de ruídos e vibrações que o camião está a ser rebocado. Apenas os silvos do vapor, e o adorável e hipnotizante "chug-chug."
Este veículo circula normalmente no trânsito, mercê do limite legal que só permite andar nas localidades a 30 milhas por hora ( 50 km/h). Embora com um arranque pior do que uma bicicleta, os cerca de cento e vinte cavalos do motor, medidos há uns anos num aparelho de testar tomadas de força de tractores, permitem este brinquedo chegar com relativo desembaraço às trinta milhas por hora. Se bem que dá para perceber que pouco mais seria capaz de acelerar.Acelerar dos zero aos cem, seria coisa para medir em minutos, se por acaso lá conseguisse chegar.
Apesar de possuir um dínamo que recarrega a bateria, o sistema de carga é pouco eficaz, dado que o motor a vapor só roda em andamento. Por isso, toda a actividade elétrica é reduzida ao mínimo, e o apito de pressão é utilizado amiude. Porreiro. Como não podia deixar de ser, este veículo é um íman de atenções, e nos semáforos os telemóveis disparam a um ritmo que deixaria Beckam frustrado.
Todo o camião se comporta de um modo salutar, como se fosse mais um TIR a chegar a Alverca. O sacudir violento da cabine, porém, indica-nos que este exemplar tem muito mais anos "no lombo", e não pode contar com modernas suspensões pneumáticas. Com um esgar impresso na face, continuo a colocar pedras de carvão, uma a uma, dentro do pequeno orifício na fornalha.
Prestes a chegar de novo ao local de partida, não deixo de pensar o longo caminho que a tecnologia e a humanidade percorreu. Hoje, um divertido e curioso engenho, foi outrora um imprescindível suporte de trabalho para muitos ganharem o pão, e imagino alguém percorrendo longos caminhos quase ao relento colocando pedrinhas de carvão na fornalha.Deixo este veiculo para trás, já com saudade, e um profundo agradecimento por alguém um dia se ter lembrado de preservar estes monstros, para que eu os pudesse apreciar. E continuar com um sorriso na face mesmo agora enquanto escrevo estas linhas, dias depois.
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