Sunday, 20 January 2008

Viver com um automóvel clássico

Quando eu estou cheio de fome, sentado num restaurante desesperado por já ter acabado com o pão e a manteiga, nem deixo o prato pousar na mesa para começar a despejar o seu conteúdo. Não fico ocupado durante meia hora a perfilar as batatinhas e a fazer quadradinhos com o arroz. Vai tudo goela abaixo num instante.

Mas por algum motivo inexplicável, muitos de nós ao adquirirem um automóvel clássico, entretém-se num passatempo obscuro de substituir todos os parafusinhos e bocadinhos de tecido possíveis e imaginários, a limpar e cromar as mais invisíveis e escondidas peças em jacto de areia, e a tentarem desmontar o carro a um ponto que envergonharia os operários que o montaram na fábrica.

" Mas assim é que deve ser ", respondem-me já indivíduos de sapatinho de vela que trabalham em escritórios iluminados por doentios neons todo o dia.

Porém, acontece sempre uma de duas coisas: Demoramos tanto tempo no restauro, por vezes substituindo material resistente por imitações e cromados chineses que se deterioram mal apareça uma humidadezita, que acabamos por esquecer para que serve este ou aquele parafuso ( Ou perdemo-los, pura e simplesmente), ou gastamos rios de dinheiro para depois apanharmos um temporal em Junho que enlameia as estradas e enferruja e conspurca tudo outra vez.

Seja como fôr, perdemos por vezes anos, que de outro modo poderíamos aproveitar para usufruir verdadeiramente de um clássico como deve de ser. Isto é, circular com ele. Sair com a familia. Ir a encontros. Fazer viagens . Perceber ao fim ao cabo qual o feeling do veículo, e receber algum feedback da parte dele . Conviver com ele. Perceber em andamento quas as suas fraquezas e qualidades. Proporcionar ao público em geral a visão de um modelo nostálgico que possivelmente há muito não viam nas estradas. Avariar na berma da estrada e ter o privilégio de conseguir desenrascar com um arame e um pau. Ter uma história para contar no café, quando chegássemos.

Não quero dizer que um clássico não deva ser alvo de uma recuperação o mais competente possivel, mas devemos lembrar-nos que isto é uma máquina com a função de circular nas estradas cheias de pó e detritos, e é para isso que foi construida. É para isso que os adquirimos.É para isso que eu nem durmo, a esfregar-me debaixo do carro a tentar arranjar travões e luzes para o carro passar na inspecção "ontem"! Cromados e estofador, fazem-se "em andamento"...

Eu não adquiro um clássico para estar fechado numa garagem o ano inteiro , encerrado num dispendioso "Carcoon", para mostrar aos colegas do escritório em como substituítodos os parafusos da chapa de cobertura da caixa de velocidades.

O facto de conduzir no meu dia-a-dia um Austin Seven de 1936 para ir para o trabalho, valeu-me alguma atenção dos Media locais em Inglaterra, não porque gastei 1000 contos numa pintura de estufa, mas porque se torna numa visão nostálgica nas ruas , e trago memórias que surgem em catadupa a quem se cruza comigo no caminho.

O guarda-lamas esquerdo foi esfolado num supermercado, e está pintado a pincel. Os pára-choques estao com o cromado a corroer. Montei uns piscas de doze volts com umas braçadeiras. No entanto, o sistema de carga, pneus e travões são rigorosamente novos e afinados. O " entusiasta " de bigodinho dos encontros portugueses e sapatinho engraxadinho, diria num instante que o carro está "todo" estragado.

Mas, oh yes!...Que experiências e aventuras extraordinárias tenho vivido. Quantas pessoas se dirigem compulsivamente a mim de cada vez que atesto numa bomba. Que gozo tenho dar à manivela para pegar num Hipermercado, tendo de apitar em seguida para as pessoas que batem palmas se desviarem da frente para eu poder passar. Que sentimento estranho e arrebatador tenho , quando velhotes de lágrimas nos olhos me vêm dizer que fizeram isto e aquilo com um carro igual, e que foi "num destes", que começaram a cortejar a esposa.

Ou debaixo de chuva torrencial, onde mal consigo ver o caminho, um dispendioso Volvo abranda ao meu lado, com o condutor a estender vigorosamente o polegar na minha direcção.

...Se tivesse feito como muitos...ainda estava de volta dos parafusinhos e do jacto de areia...lá para o ano 2010,talvez fosse entao a um encontrozito...num atrelado,claro. Pois ainda não estaria pronto.

E depois, mesmo assim, não me livraria certamente dos "especialistas" que dão pontapézinhos nos pneus me dizerem, por causa de uma lasca no espelho, que o carro estava " todo mal recuperado..."

Possuir um clássico, é acerca de experiências. As nossas, e as passadas anteriormente com outro proprietário. Passados uns meses, o senhor que me vendeu o Austin , mandou-me umas fotos do carro e recibos dos anos quarenta! O meu carro ajudou no esforço da segunda guerra mundial!

Acho que isso vale infinitamente mais do que ter os parafusinhos que seguram o escape todos cromadinhos, e dizer que o carro " é de garagem". Isso é muito bonito se eu quiser comprar um AX, mas não, muito obrigado, se se tratar de um clássico.

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